Danny
Glover: “O racismo tem uma relação funcional com o capitalismo”
Foto:
Rafael Stedile
Em visita
ao Brasil, ator e ativista norte-americano falou ao Brasil de Fato sobre
racismo, as condições dos trabalhadores nos Estados Unidos e o potencial do
cinema para conscientizar o público
Por José
Coutinho Júnior,
De São
Paulo (SP)
Danny Glover ainda não sabia, mas
na tarde daquela quarta-feira (15), estaria exausto. O ator, ativista e
produtor norte-americano veio ao Brasil para participar de um congresso da CUT
na terça-feira (14). No dia seguinte, acordou cedo, saiu de seu hotel próximo
ao aeroporto de Guarulhos e foi, acompanhado de militantes do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conhecer a Escola Nacional Florestan
Fernandes (ENFF).
Tomou café, conversou com a
coordenação da escola e conheceu mais de 60 estudantes do mundo inteiro, todos
parte de um curso de teoria política e que não pouparam os flashes das
câmeras.
“É incrível existir um local que
prepara as pessoas para lutar por um mundo melhor. Isso é o que essa escola
representa. Esse lugar é um sopro de ar fresco. É um presente estar aqui hoje.
Olhando para vocês, que são o futuro”, disse, sob uma chuva de palmas.
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Foto: Rafael Stedile.
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Glover, famoso no mundo todo por
sua atuação em filmes como A Cor Púrpura, Mandela e Máquina Mortífera,
sempre foi ligado às causas sociais. Quando jovem, fez parte de movimentos que
lutaram contra a segregação racial nos Estados Unidos. Filho de trabalhadores
que participavam de sindicatos, ele denuncia a falta de direitos e a exploração
a que muitos trabalhadores estão submetidos no país.
Hoje, é produtor de cinema,
realizando diversos documentários na Palestina, Tailândia e também sobre temas
sensíveis aos estadunidenses, como o porte de armas e o aquecimento
global.
No final da visita à escola, o
ator plantou uma muda de cerejeira no jardim do local. Com dificuldades para
colocar e regar a muda na terra, brincou: “I’m too old for this shit [estou
muito velho para essa merda]”, bordão de Roger Murtaugh, o icônico policial de
Máquina Mortífera.
Mas, por mais que estivesse velho e reclamasse, Murtaugh nunca deixava de fazer o que tinha de fazer para salvar o dia. E assim também é Danny Glover: apesar da exaustão, está ao lado dos trabalhadores, participando de atos, congressos e movimentos sociais pelo mundo.
Abaixo, confira a entrevista de
Danny Glover ao Brasil de Fato sobre o racismo nos Estados Unidos, sua
trajetória como militante, o que pensa do Brasil e o potencial do cinema para
conscientizar as pessoas, concedida pouco tempo tempo antes do ator tirar seu
merecido sono:
Brasil de
Fato - Você nasceu no período em que os negros eram segregados da sociedade
americana. Como era ser negro nessa época?
Danny Glover - Eu fui nutrido por
uma cultura, não só daquela época, mas do meu passado. Minha bisavó nasceu em
1853. A emancipação dos escravos ocorreu quando ela tinha 10 anos. E a conheci
quando era criança, ela tinha mais de 90 anos. Há uma conexão entre a minha
vida, a minha raça e o pensamento político da minha família. Minha mãe foi a
primeira pessoa da família e da comunidade a se formar numa universidade, em
1942. Meus avôs conseguiram, após trabalhar muito tempo como camponeses,
comprar uma propriedade rural de 52 hectares. Minha mãe e seus irmãos foram à
escola e não tiveram que colher algodão na época da colheita. Isso foi um
grande sacrifício para a família, pois eles precisavam de todas as mãos
possíveis para colher e pagar as contas. Minha mãe estava internamente grata
pelos pais por ir à escola. A escola se tornou algo cravado na consciência da
minha família como um local necessário para se seguir em frente na vida. Meus
avós, que tinham a educação mais básica, viram que era esse o futuro e fizeram
o sacrifício para que seus filhos estudassem. É esse tipo de coisa que moldou
minha vida.
Nasci em 1946, oito anos depois
da decisão da suprema corte americana que disse que “igual não é igual”. Foi a
fundação dos movimentos que lutaram pelos direitos civis e antissegregação. A
ideia de criar locais e acomodações diferentes para negros e brancos virou lei.
Essa segregação, que afetou meus pais imediatamente, se tornou o catalizador
para que eu iniciasse o processo de entender a relação que tenho com o meu país
como um cidadão. Meus pais eram carteiros, ligados ao sindicato, e,
frequentemente, conversavam sobre o trabalho militante deles no sindicato e
como isso se conectava aos movimentos dos direitos civis. Escutava isso, além
de ler muito.
Sou de São Francisco, California,
uma cidade muito radical, progressista. Tinha o sindicato mais progressista do
país, formado por trabalhadores de armazéns e portos. Era um dos grupos mais
radicais: foi o primeiro a boicotar bens sul-africanos, dizendo que não descarregariam
produtos do país do Apartheid. As políticas estudantis, nas duas universidades
da Califórnia, a cultura que emergiu com os hippies, os panteras negras, foram
parte em especial do meu modo de entender o que estava acontecendo no mundo.
Quando estava com 14, 15 anos,
comecei a participar do movimento pelos direitos civis, inspirado nesse atleta
incrível chamado Mohamad Ali, quando disse que “I Ain't Got No Quarrel With The
vietcong... No vietcong ever called me nigger [não tenho desavenças com os
vietcongs, nenhum vietcong jamais me chamou de preto]”. Foi uma frase simples,
mas que teve implicações enormes para mim e para a sociedade. Quando tinha 20
anos, tudo isso estava em mim. Todos esses elementos progressistas se tornaram
parte da minha consciência e abracei tudo isso.
Em 1987, vou para a San Francisco
State, uma universidade que passa por outro nível de radicalização, com grupos
de estudantes negros. Tudo isso me situa e molda a forma como lido com a
cultura, o que leio, o que escuto.
Como a
arte, principalmente o cinema, pode levar questões sociais às pessoas e ser
transformadora?
Sempre assisti filmes de vários
países e cineastas: brasileiros, argentinos, bolivianos, europeus, africanos,
japoneses... os trabalhos de Fellini, Truffaut, Bergman, todos esses filmes e
diretores me influenciaram. Quando era jovem, trabalhava numa área diferente do
teatro. Geralmente, as peças de teatro tem uma estória, uma estrutura
organizada, que se manifesta ao longo da obra, mas me envolvi no que foi
considerado “arte negra”. Eram peças de agitação e propaganda. Curtas, que
tinham como objetivo passar uma mensagem ideológica. Sobre como se tornar
militante, conseguir emprego. Eram peças muito políticas.
Então, eu via o drama como algo
político, uma forma de transmitir essas ideias de uma forma diferente. Esse foi
o começo da minha relação com teatro e arte. E como fui formado por isso, o que
eu queria fazer com a arte, na maioria das vezes, difere da agenda que a
indústria me apresentou. Fiz muitos filmes populares e comerciais, mas sempre
tive essa inclinação de querer fazer filmes menores, que tenham um significado.
Só nos últimos dez anos consegui
fazer o tipo de arte com caráter político similar ao que tinha me formado, via
documentários ou narrativas. Como produtor, já fiz três filmes palestinos, dois
tailandeses, um documentário sobre o movimento de direitos civis, um sobre
aquecimento global e outro sobre a liberação de armas. São essas experiências
que me moldaram como artista, ator e cidadão, e me fizeram pensar em como
manifestar essas ideias no meu trabalho.
É
possível fazer filmes com um caráter crítico e social em Hollywood?
É difícil dizer. Tento fazer um
filme sobre a revolução haitiana por anos. É obviamente uma história sobre
negros, e tem sido difícil. Mas por propósito de custos, o filme tem de ser
fora do sistema. Se fizesse dentro, o custo seria 30% ou 40% maior. Sob esse
ponto de vista, é possível? Mas quando se pensa em produções culturais, a forma
como o cinema pode moldar pensamentos em um curto período de tempo é algo
incrivelmente bom para nós, e isso precisa ser explorado.
Como você
vê o racismo hoje nos EUA, principalmente após o que ocorreu em Ferguson?
Ferguson e outros lugares
semelhantes são criados pela ausência de qualquer estrutura, além da
brutalização da força policial. A questão racial é algo muito enraizado na
minha vida, no que faço. O que penso é que muitas vezes se ignora que a raça
está ligada, tangencialmente, a muitos outros temas, como pobreza, saúde,
procura de empregos. Prestamos atenção no racismo explícito, mas acabamos
ignorando esse racismo mais sutil. O problema é que a raça é obscurecida por
outros problemas programados na nossa cabeça pelo consumismo. Para manter nosso
padrão ou lugar nas nossas vidas, precisamos manter certas necessidades físicas
e psicológicas.
Assim, o racismo tem uma relação
funcional com o capitalismo, na exploração dos negros como mão-de-obra barata.
E para romper com isso, precisamos pensar em outros sistemas e formas. Que
potencial um outro sistema, como o socialismo, poderia ter nessa questão? Como
falar de raça sobre outro ponto de vista e criar uma estrutura que melhore o
planeta e a humanidade? Quais ferramentas e políticas que precisamos para isso?
Você está
engajado na luta sindical dos EUA. Qual a situação dos trabalhadores no país,
em especial os negros?
Estatisticamente, há 40 anos, a
renda dos trabalhadores vem diminuindo significativamente. Não só isso, os
trabalhadores americanos trabalham mais horas, o número de mulheres que compõem
a força de trabalho mais que dobrou nesse tempo, não porque há novas
oportunidades para mulheres, mas porque o dinheiro que elas ganham é crucial
para manter a casa.
Os trabalhadores americanos
brancos ganham mais que os negros, e os números para as mulheres são menores
ainda. Há uma situação onde negros têm as maiores taxas de desemprego, menores
condições de economizar dinheiro e acumular bens no mesmo trabalho.
Você já
visitou o Brasil várias vezes. Como você enxerga o racismo no país? Um garoto
negro de 10 anos foi assassinado recentemente em uma favela do rio pela Polícia
Militar...
O racismo e a militarização da
polícia nas comunidades negras é algo que ocorre em várias partes do mundo e
temos que nos preocupar com isso. Como o Estado, junto com a sociedade, se
aproximam desse problema? E qual o papel da polícia na sociedade? Por que não
houve uma comoção no espaço público causada pela morte desse menino? A morte
desse garoto é emblemática. As pessoas da favela estão excluídas economicamente
da sociedade, mas também psicologicamente.
Esse tipo de violência acontece
com tanta regularidade que o Estado deve ser responsabilizado. Não me interessa
se o Estado é de direita ou esquerda, ele tem de tomar medidas, desenvolver
políticas públicas para melhorar a vida nas comunidades e das crianças negras e
pobres, valorizando a vida delas.
Para
terminar, você pensa um dia em fazer um filme sobre o Brasil?
Claro! Adoraria fazer um
documentário sobre o Brasil. Não tenho planos ainda, mas, provavelmente, é algo
que vou fazer.