Como os
sonhos podem ter papel terapêutico no fim da vida de uma pessoa
parte II
Jan Hoffman
Em Lancaster, New York (EUA)
Em Lancaster, New York (EUA)
- Jonathon Rosen/The New York Times
Essa pesquisa ainda está no
início. Os investigadores, conselheiros e médicos de cuidados paliativos, estão
tentando identificar e descrever os fenômenos. Quill afirma que acredita que os
estudos vão tornar essas experiências mais acessíveis aos médicos céticos.
"O maior desafio desse
trabalho é ajudar os pacientes a se sentirem mais normais e menos solitários
durante essa experiência incomum de morrer. Quanto mais afirmarmos que essas
pessoas realmente têm sonhos e visões vívidas, mais poderemos ajudá-las",
afirma ele.
Outra pesquisa sugere que os
sonhos expressam emoções acumuladas. Tore Nielsen, pesquisador de Neurociência
do Sonho e diretor do Laboratório de Sonhos e Pesadelos da Universidade de
Montreal, acredita que no final da vida a necessidade de expressá-las é maior.
Os sonhos conturbados aparecem com uma energia excessiva. Mas sonhos positivos
têm propósitos parecidos.
"A motivação e a urgência
desses sonhos vêm de um lugar de medo e incertezas. Os sonhadores estão
literalmente saindo dessas situações difíceis", conta ele.
Nas semanas e dias antes da
morte, os sonhos dos pacientes da pesquisa tenderam a ocorrer com mais
frequência, povoados com os mortos ao invés dos vivos. Os pesquisadores
imaginam que esse fenômeno pode até ter valor de prognóstico.
"Eu era um médico agressivo,
sempre me perguntando 'O que mais podemos fazer?'", conta Kerr, que também
é diretor médico do Lar Buffalo. "Havia um paciente que pensei que
precisava ser reidratado, e assim poderíamos mantê-lo por mais algum
tempo." Mas, diz ele, uma enfermeira que conhecia os sonhos do paciente
advertiu: "'Não é isso. Ele está vendo a mãe morta'. Ele faleceu dois dias
depois".
Certamente, muitos pacientes que
estão à beira da morte não podem se comunicar. Ou contam apenas pequenos
trechos: um anão levantando uma geladeira, vizinhos trazendo uma galinha e a
visita de um macaco ao seu apartamento. E alguns, para seu próprio
desapontamento, não se lembram dos sonhos.
Kerr, que recentemente falou no
TEDxBuffalo sobre a pesquisa, disse que estava simplesmente defendendo que os
provedores de serviços de saúde perguntassem aos pacientes sobre seus sonhos,
sem medo de recriminação por parte das famílias e dos colegas.
"Frequentemente, quando os
sedamos, estamos esterilizando o próprio processo da morte. Já fiz isso e é
horrível. Eles dizem: 'Você tirou isso de mim -- eu estava com minha
mulher'."
Complexidades
do delírio
Enquanto a paciente estava
deitada na cama, com a mãe ao seu lado, teve uma visão: viu a melhor amiga da
mãe, Mary, que havia morrido de leucemia anos atrás, no quarto de sua mãe,
brincando com as cortinas. O cabelo de Mary estava comprido novamente.
"Tive a impressão de que ela veio me dizer: 'Você vai ficar bem'. Senti
alívio e felicidade e não fiquei com medo", contou Jessica Stone, de 13
anos, que teve Sarcoma de Ewing, um tipo de câncer nos ossos, poucos meses
antes de morrer.
Muitas pessoas em lares e
instituições sofrem de delírios, algo que pode afetar até 85 por cento dos
pacientes hospitalizados no final da vida. Em um estágio de delírio -- causado
por febre, metástase no cérebro ou mudanças terminais na química do corpo -- o
ritmo circadiano fica severamente desordenado, assim os pacientes podem não
saber se estão sonhando ou se estão acordados. A cognição fica alterada.
Quem cuida de pessoas com doenças
terminais tem a propensão de ver os sonhos do final da vida como manifestações
de delírios. Mas no Lar Buffalo os pesquisadores dizem que, apesar de alguns
pacientes da pesquisa entrarem e saírem de um estado de delírio, os sonhos de
final de vida não eram, por definição, um produto desse estado. Quem está
delirando geralmente não consegue se envolver com os outros nem fazer uma
narrativa coerente e organizada. As alucinações descritas podem ser
traumatizantes, não reconfortantes.
Ainda assim, permanece a questão
de o que fazer com as afirmações de que estavam "sonhando acordados"
ou tendo "visões" -- e com o fenômeno não tão incomum de ver parentes
ou amigos mortos pairando perto do teto ou nos cantos.]
DonnaBrennan, enfermeira de longa
data do Lar Buffalo, lembra-se de conversar com uma paciente de 92 anos com
insuficiência cardíaca congestiva. De repente, a paciente olhou para a porta e
gritou: "Só um minuto, estou falando com a enfermeira".
Quando avisada de que não havia
ninguém ali, a paciente sorriu e disse que era a tia Janiece (sua irmã já
falecida) e deu um tapinha na almofada, mostrando à "visitante" onde
se sentar. Então a paciente alegremente virou-se para a enfermeira e continuou
a conversa.
Em suas notas, Donna descreveu o
episódio como uma "alucinação", um sinal de delírio. Quando o
episódio foi recontado para Kerr e Anne Banas, neurologista do Lar Buffalo e
médica de cuidados paliativos, eles preferiram o termo "visão".
"Existe sentido para as
visões ou elas são desorganizadas?", pergunta Anne. "Se existe
sentido, precisa ser explorado? Elas trazem conforto ou são angustiantes? Temos
a responsabilidade de fazer essas perguntas. Pode ser catártico, e os pacientes
muitas vezes precisam compartilhar. E se não perguntarmos, veja o que podemos
perder."
O doutor William Breitbart,
presidente do departamento de Psiquiatria do Centro de Câncer do Memorial Sloan
Kettering, que escreveu sobre delírios e cuidados paliativos, diz que a
resposta da equipe também deve considerar as pessoas que estão sempre ao lado
dos pacientes: "Esses sonhos e visões podem ser interpretados por membros
da família como reconfortantes, porque os ligam a seus ancestrais".
"Mas quem não acredita
nisso, pode ficar angustiado. 'Minha mãe está alucinando e vendo mortos. Faça
alguma coisa!'." Breitbart treina sua equipe para respeitar as crenças
familiares e ajudá-las a entender a complexidade dos delírios.
Alguns episódios de sonhos
ocorrem durante o que é conhecido como "sono em estado misto" --
quando as fronteiras entre a vigília e o sono se fragmentam, explica o doutor
Carlos H. Schenck, psiquiatra e especialistas em sono da Escola de Medicina da
Universidade de Minnesota. Jessica Stone, a adolescente com sarcoma de Ewing,
falou com emoção sobre um sonho com seu cachorro morto, Shadow. Quando acordou,
contou, viu o corpo longo e escuro do animal ao lado de sua cama.
Anne Banas, a neurologista, foca
na fase de experiências de final de vida. "Tento mostrar para a família
que é normal, porque a maneira como eles percebem a questão pode afastá-los ou
aproximá-los do paciente", conta ela.